Posicionamento: Retirada da Competência dos Tribunais Judiciais de Distrito de Mandar Recontar Votos é um retrocesso democrático
A Assembleia da República (AR) aprovou, no passado dia 8 de Agosto corrente, uma Lei que impede os Tribunais Judiciais de Distrito de mandarem recontar votos em caso de irregularidades eleitorais. Com esta aprovação feita pelas Bancadas Parlamentares da Frelimo e da Renamo, os Tribunais Distritais perdem esta autonomia, que passa ser apenas da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e do Conselho Constitucional (CC). Este texto apresenta o posicionamento do Consórcio Eleitoral Mais Integridade em face a esta mexida de vulto no quadro legislativo que regula a realização de eleições, no país. No essencial, o posicionamento argumenta que a decisão de retirar a competência dos Tribunais Distritais para mandar recontar votos representa um retrocesso no processo democrático e uma oportunidade perdida para reforçar a integridade e a eficácia do sistema eleitoral moçambicano.
Mas antes, vamos aos factos:
A Lei n° 2⁄2019, de 31 de Maio, em vigor, o artigo 196A, n-°1 sobre a recontagem de votos, estipula que «havendo prova de ocorrência de irregularidades em qualquer mesa de votação …, a Comissão Nacional de Eleições ou o Conselho Constitucional conforme o caso, ordenam a recontagem a recontagem de votos, das mesas onde as irregularidades tiveram lugar.» Mais adiante, o n.°3 da lei que em citação, dispõe que «o disposto no número 1 do presente artigo, «a recontagem de votos é executada pela Comissão de Eleições distrital ou de cidade …».
O exercício destes poderes atribuídos pela Lei n° 2⁄2019 à Comissão Nacional de Eleições e os seus órgãos de apoio, particularmente as comissões distritais, bem como o Conselho Constitucional nas sextas eleições autárquicas realizadas em 2023, não deixou boas memórias sobre o desempenho destes órgãos. Abaixo alguns exemplos relacionados com a CNE, CDE e os presidentes das mesas da assembleia de voto:
- Desvio de urna na autarquia de Marromeu;
- Recusa em assinar acta e edital de apuramento parcial na mesa da assembleia de votos;
- Registo clandestino de eleitores por parte dos directores distritais do STAE.
Relativamente ao Conselho Constitucional:
- Recontagem e distribuição de votos em benefício de alguns concorrentes e em prejuízo de outros.
- Manifestação pública de competências, num aparente colete de forcas, sobre quem tem o poder de anular, mandar recontar votos e mandar repetir eleições na mesa da assembleia de voto.
Por sua vez, os Tribunais Judiciais de Distrito notabilizaram-se na anulação de resultados eleitorais em algumas autarquias do país. Como devem estar todos lembrados, a actuação destes órgãos nas eleições autárquicas de 2023 criou um cenário de conflito de competências, que se manifestou numa “guerra de palavras” entre o Conselho Constitucional e o Tribunal Supremo. A situação influenciou a Assembleia da República a aprovar uma lei de revisão, atribuindo mais poder aos Tribunais de Distrito. O poder consistia em mandar recontar votos na mesa da assembleia de votos sempre que se verifiquem irregularidades que justifiquem. Esta lei foi aprovada, por unanimidade, pelas três bancadas parlamentares e submetida ao Presidente da República para efeitos de publicação.
Oportunidade perdida para reforçar a integridade e a eficácia do sistema eleitoral moçambicano:
Quando tudo fazia antever que as eleições deste ano representavam uma oportunidade para os Tribunais Judiciais terem poder de mandar recontar votos na mesa da assembleia de voto, assim não se efectivou. Como reza a lei e a doutrina, quando um acto do poder político é praticado sem que se tenham seguido todos os trâmites previstos nas normas constitucionais, recai sobre ele a inconstitucionalidade formal. De entre esses trâmites, as normas constitucionais que devem ser seguidas de modo a produzir efeitos, devem ter a assinatura do Presidente da República e a respectiva homologação.
Embora tenha aprovado por consenso a lei que iria conferir o poder de recontagem aos tribunais distritais, depois do envio ao Presidente da República para assinatura e homologação, desencadeou-se o processo de devolução para exame, que não foi mais do que um pretexto de retirada de um eventual protagonismo dos Tribunais de Distrito no julgamento do contencioso eleitoral em 2024. Foi neste contexto que a Assembleia da República, através das bancadas parlamentares da Frelimo e da Renamo, deliberou, na semana passada, por retirar a competência dos Tribunais Distritais de mandar recontar votos assembleias de votos.
Entretanto, esta alteração na legislação, que centraliza a validação das eleições exclusivamente no Conselho Constitucional e retira dos Tribunais Distritais a competência para ordenar a recontagem de votos, levanta sérias preocupações. A Constituição da República prevê que o Conselho Constitucional deve actuar em última instância, sugerindo que deveria haver uma instância inferior para tratar inicialmente dos casos eleitorais. Esta mudança parece enfraquecer o sistema judiciário, prejudicando a capacidade de garantir justiça e transparência eleitoral.
O Consórcio Eleitoral Mais Integridade faz saber que, na sus qualidade de observador do processo eleitoral moçambicano, foi convidado pela Assembleia da República, em Abril de 2024, a contribuir para a revisão da legislação eleitoral. Nessa ocasião, o Consórcio defendeu a manutenção dos Tribunais Distritais com competências claras para julgar contenciosos eleitorais, incluindo a repetição, recontagem e anulação de eleições. Na altura, propusemos, ainda, um modelo de duas instâncias, com Tribunais de Distrito actuando como primeira instância e Tribunais de recurso como segunda instância, antes de qualquer caso chegar ao Conselho Constitucional, reservado apenas para questões de relevância constitucional.
Por isso, enquanto Consórcio, ficamos surpresos com a decisão de retirar a competência dos Tribunais Distritais para mandar recontar votos, em vez de regulamentá-la adequadamente. Consideramos esta medida um retrocesso significativo para a justiça eleitoral, em Moçambique, enfraquecendo a capacidade dos Tribunais de assegurar transparência e equidade nas eleições e comprometendo os avanços democráticos conquistados. Esta decisão aponta, pois, para um claro retrocesso no processo democrático e uma oportunidade perdida para reforçar a integridade e a eficácia do sistema eleitoral. Preocupa, ainda, ao Consórcio Mais Integridade, o facto de que a exclusividade do exercício dos poderes retro mencionados não estar expressa na Constituição da República, tratando-se de uma presunção do próprio Conselho Constitucional que entende que eles estão implícitos na Constituição da República. Pois, conforme o CC entende, se pode validar e proclamar os resultados eleitorais, presume-se que, também pode mandar recontar, mandar repetir e mandar anular se as irregularidades tiveram lugar nas mesas de voto, conforme ficou expresso nos seus acórdãos referentes às eleições autárquicas de 2024.
Diante do actual cenário de retirada de competências dos Tribunais Judiciais de Distrito, espera-se o seguinte:
- Uma grande «farra» nas mesas das assembleias de voto a coberto da lei, visto que a comissão distrital passa a exercer funções delegadas pela CNE, como de mandar recontar votos na mesa da assembleia de votos.
- Os presidentes das mesas de voto têm o poder reforçado de mandar chamar a polícia, quando lhes aprouver em conluio com outros membros da mesa.
Recomendação:
Por isso, enquanto Consórcio de observação eleitoral, recomendamos a todas as forcas vivas da sociedade, incluindo juízes, advogados, políticos excluídos sem razão aparente, organizações da sociedade civil, entre outros actores, a estabelecerem um movimento para o resgate da lei inicialmente devolvida pelo Presidente da República para exame em prejuízo das competências dos tribunais distritais. É tempo de os vários actores interessados num processo eleitoral justo e íntegro unirem esforços para defender a democracia que está a ser sequestrada por forças interessadas apenas na sua manutenção e reprodução e não pelo progresso do país que é de todos nós.
_____________________________________________________________
Constituído em 2022, o Consórcio Eleitoral “Mais Integridade” tem como objetivo contribuir para a transparência e integridade do ciclo eleitoral 2023-2024, avaliando, de forma objectiva e isenta, o seu desenrolar, produzindo informação e análise públicas e credíveis sobre as várias fases do processo, incentivando o nível e a qualidade de participação dos cidadãos e contribuindo para a redução das tensões eleitorais. É composto pela Comissão Episcopal de Justiça e Paz (CEJP) da Igreja Católica, Centro de Integridade Pública (CIP), Núcleo das Associações Femininas da Zambézia (NAFEZA), Solidariedade Moçambique (SoldMoz), Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC), Capítulo Moçambicano do Instituto para Comunicação Social da África Austral (MISA Moçambique) e Fórum das Associações Moçambicanas de Pessoas com Deficiência (FAMOD).
Para mais informação sobre este comunicado ou sobre o Consórcio, contacte-nos através de:
Rua Fernão Melo e Castro, nr. 124,
Bairro da Sommerschield, Maputo, CP 3266
E-mail: cip@cipmoz.org
Tel: +258 21499916
Contacto Directo:
Edson Cortez
E-mail: edson.cortez@cipmoz.org e edcottez@gmail.com